terça-feira, 30 de setembro de 2008


Em Um Cavalo em Tróia Otaviano Roberto integra e-mails que Juliano S. troca com Maria da Graça. Em um deles, recomenda alguns sites:

http://etieneenxaixou.blogspot.com/

http://zeezana.blogspot.com/

http://ozeetatu.arteblog.com.br/

http://www.myspace.com/ozetatu

http://www.myspace.com/zemenna



RODOLFO E KATY DEZ ANOS DEPOIS*



* Micro-roteiro em um ato, concebido seqüência de Panorama Visto da Ponte, de Arthur Miller.



CENA 1
Escritório de Alfieri

ALFIERI – Quem dita os caprichos da fortuna? Que deuses guardam os caminhos do mundo, as alcovas da providência? Que força oculta impulsiona multidões ao flagelo, tomba cidades, depõe reis e enfurece o mar? Por que mistérios a virtude, casta flor matutina, revela-se impiedosa revolta, furacão insaciável, no cair da tarde? Tão logo ultrapassamos a infância da vida deparamo-nos com a miséria insuperável. Sempre foi assim. Ao longo de minha vida nada presenciei diferente. Somos escravos da fatalidade. A aurora dos tempos culminará na penitência.
Meu nome é Alfieri. Sou advogado. Há muito tempo atrás, num dia distante, pus-me a contemplar o panorama que se me oferece desta janela, em meu escritório, e recordei-me de um caso. Sou advogado, como disse, e ao longo da vida acompanhei as pessoas desta vila em suas mazelas, em suas querelas e desavenças particulares. Contudo, nada do que presenciei se equipara a um caso, em particular. Esse caso, num entardecer remoto, recordei-o diante de uma platéia espectral. E recordei-o novamente, no dia seguinte. E novamente no próximo, e no próximo. E desde então se resumem a isso meus dias. Quando o sol principia seu trabalho de lentamente mergulhar no lado oposto da ponte, subo ao que outrora foi meu escritório e, talvez por penitência, talvez por autocompaixão, narro em detalhes o caso mais lúgubre que acompanhei.
Já não trabalho mais, meus músculos estão cansados, meu pensamento está vazio. Em breve a morte, com seu manto acolhedor e justo, há de trazer descanso aos meus dias. Contudo sei que enquanto me restarem forças, sustentarei a faina alucinada de recordar o que teria sido talvez um acidente, uma paixão desenfreada. Tanto tempo se passou, e uma dor surda, ferina, tem lugar à mesa – um grito contido, uma família silenciosa. A vida segue, mas como um movimento já sem propósito. Um incansável eco do passado. Ou um fantasma insone, que acorda a casa pela madrugada.
A vida nos reserva dores surdas, ferinas. E esta, em particular, há muito desistiu de pedir alívio. Assim como o marinheiro à deriva que, no meio da tempestade, já não sonha mais com a bonança. (apaga-se a luz sobre Alfieri)

CENA 2
Uma sala

Em uma sala modesta, bastante humilde, Rodolfo e Katy estão sentados, tomando café. Rodolfo está de perfil para o público, à esquerda do palco, na cabeceira da mesa. Katy está de frente para a platéia, sentada à esquerda de Rodolfo. Ambos bebem o café lentamente, com o corpo encurvado devido ao frio.

RODOLFO – Sempre o mesmo café...

CATARINA – Está frio.

RODOLFO – Sempre o mesmo café, a mesma rotina. A usina, o serviço, trabalhar o dia inteiro... Essa noite fria! Esse café frio nos domingos...

CATARINA – Pelo menos temos algum dinheiro. Não vivemos de favores como no ano passado...

RODOLFO – Na indústria as pessoas são como loucas, Katy! Exigem de você o tempo inteiro...

CATARINA – Você pelo menos se diverte com Tommy.

RODOLFO – É... O carteado me faz sentir como novo. (Subitamente alegre) A filha do Tommy estava lá, na última noite. Ela conta coisas magníficas de Jersey. Lá, o mundo é diferente.

CATARINA – Sei...

RODOLFO – Às vezes eu penso em me mudar... Tentar trabalho no cinema, no teatro...

CATARINA – Rodolfo, você não cresceu...

RODOLFO – É de lá o Jazz novo, Katy.

CATARINA – Rodolfo, você não cresceu...

Ficam um tempo em silêncio. Começa uma música instrumental, triste, lenta.

RODOLFO – Amanhã o pessoal se reúne na casa do Tommy, depois das nove.

CATARINA – E você vai...

RODOLFO – É...

CATARINA – O Eduard anda resfriado.

RODOLFO (esfregando as mãos) – Esse frio...

CATARINA – Rodolfo, essa noite aconteceu de novo.

RODOLFO – O quê?

CATARINA – Eu sonhei...

RODOLFO – Ah, aquele sonho louco...

CATARINA – Eu tenho medo.

RODOLFO – (...)

CATARINA – Eu caminhava num... (desvincula-se da personagem e fala com frieza, olhando o público) –

Por aqui as coisas não vão bem.
O filme se repete, a dor se repete.
Alguém espreita nos cantos da casa.

Aqui as coisas não vão bem.
O tempo está fechado,
Há um barco à deriva no mar
E um leão solto nas ruas.

Por aqui as coisas vão mal:
Um triste ritornello
Guia-nos os dias.